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O lugar do trauma na justiça

Atualizado: 14 de mar. de 2023


Em entrevista concedida ao blog do Instituto NET, a juíza de direito e coordenadora do CEJUSC-PG Laryssa Angelica Copack Muniz e a psicóloga Glaucia Mayara Niedermeyer Orth conversam sobre a importância do trauma na justiça, o respeito à vítima e o trabalho com os ofensores.



Juíza e coordenadora do CEJUSC_PR Laryssa Copack, Tribunal de Justiça do Paraná, em entrevista ao blog do Instituto NET

"A magistratura do século XXI não poderá mais ignorar o trauma e suas repercussões nas violências conflituais."



Juíza e coordenadora do CEJUSC_PG Laryssa Angelica Copack Muniz, Tribunal de Justiça do Paraná, em entrevista ao blog do Instituto NET.



Recentemente, vocês publicaram o artigo “Violência sexual intrafamiliar, trauma e terapia de exposição narrativa: relato de uma experiência brasileira” na Revista Humanidades & Inovação. Qual a importância de falar sobre o trauma no sistema de justiça?


Laryssa: "A magistratura do século XXI não poderá mais ignorar o trauma e suas repercussões nas violências conflituais. O entendimento dos motivos que levam uma pessoa a praticar atos criminosos pode abrir caminhos para novas formas de responsabilização, alterando inclusive a resposta estatal que é dada, quando os atos chegam na seara criminal. Falar do trauma e estudá-lo pode ser decisivo para modificar, por exemplo, intervenções feitas em locais que recebem pessoas privadas de liberdade pela prática de crimes. Também penso que é possível novos olhares sobre o fenômeno da reincidência, a partir da análise de traumas não tratados, pois como diria Jean Marie Muller toda dor que não é transformada, será transferida. Assim, cabe ao Sistema de Justiça debruçar-se sobre o estudo do trauma se quiser realmente fazer valer a lei de execuções penais que afirma, categoricamente, que o objetivo final da pena é poder promover a volta daquele que comete crime à sociedade, com maior consciência de suas atitudes, podendo fazer escolhas melhores."


Glaucia: "O sistema de justiça criminal é um lugar que carece de humanidade e acolhimento. Vinculado fortemente à culpa e à punição, resta pouca atenção às pessoas diretamente envolvidas no fato, tanto à vítima quanto ao ofensor. O crime é entendido como uma violação da lei do Estado, o que leva à compreensão de que quando um crime acontece, quem é lesionado é o Estado. Nessa configuração, a vítima se torna mera desencadeante do assunto, em nada mais é consultada ou reparada. A vítima não tem poder para decidir o que será feito com o ofensor e sua participação em audiência segue um rito que objetiva encontrar elementos de prova para punir ou absolver o ofensor. Suas necessidades de lamento ou de narrar suas emoções e mesmo as consequências que isso trouxe à sua vida não são permitidas ou consideradas em audiência. O julgamento que é feito ao ofensor frequentemente ocorre em uma linguagem que não é acessível à sua compreensão - o juridiquês."


Glaucia Mayara Niedermeyer Orth, Psicóloga da prefeitura municipal de Ponta Grossa em entrevista ao blog do Instituto NET

"O estudo do trauma permitiu que abríssemos os olhos para um universo de dores que precisam de cuidado e atenção e não de punição simplesmente."


Glaucia Mayara Niedermeyer Orth, Psicóloga da prefeitura municipal de Ponta Grossa em entrevista ao blog do Instituto NET.



Glaucia: "Falar sobre trauma no sistema de justiça é reconhecer o impacto da violência na vida de vítimas e ofensores. Para as vítimas, o entendimento sobre o trauma permite que o sistema de justiça se mobilize para ofertar atendimento e cuidado à saúde mental de quem sofreu violência. Permite, ainda, um atendimento mais humanizado em audiência. Na 1º Vara Criminal de Ponta Grossa, após os estudos sobre trauma, a Juíza Laryssa Angélica Copack Muniz criou uma sala de espera especial para vítimas aguardarem a audiência em espaço separado do ofensor. Além disso, juntamente com a intimação para a audiência, é enviado um folder esclarecendo sobre todos os direitos da vítima, a fim de que isso possa contribuir para diminuir sua ansiedade ao saber da audiência. Para os ofensores, compreender que a exposição à violência em sua história de vida pode ter contribuído para a perpetração de atos violentos traz uma grande responsabilidade para o tratamento penal em ofertar um atendimento focado em saúde mental e responsabilização.O estudo do trauma permitiu que abríssemos os olhos para um universo de dores que precisam de cuidado e atenção e não de punição simplesmente."



2- Como o CEJUSC Ponta Grossa (Centro de judiciário de soluções de conflitos e cidadania) atua com pessoas que passaram por violências? Quais os projetos desenvolvidos no CEJUSC?


Glaucia: "O CEJUSC desenvolve um projeto chamado “Eu com verso”, destinado ao atendimento psicológico focado no trauma às pessoas que foram vítimas de crimes. As pessoas geralmente são encaminhadas por meio das varas criminais (mas também podem procurar espontaneamente o CEJUSC), que solicitam que o CEJUSC convide as vítimas para o atendimento. Posteriormente ao encaminhamento eletrônico do pedido, fazemos contato telefônico e agendamos um primeiro atendimento."



A gestora administrativa do Cejusc PG Mariana Pisacco, juntamente com a equipe de estagiários de Direito (Vinicius, Maria Cecília, Maísa e Julia), a Glaucia Orth ao fundo, a técnica administrativa Paola Delinski à direita e ao lado dela a assessora de juiz Eliete Requerme de Campos.

Foto: A gestora administrativa do Cejusc PG Mariana Pisacco, juntamente com a equipe de estagiários de Direito (Vinicius, Maria Cecília, Maísa e Julia), Glaucia Orth ao fundo, técnica administrativa Paola Delinski à direita e ao lado dela a assessora de juiz Eliete Requerme de Campos.




A gestora administrativa do Cejusc à frente e os estagiários de Direito (Leonardo, Julia, Ana, Gabriel e Maísa), juntamente com as estagiárias de pós graduação Fabiane e Elisa e as assessoras de juiz Eliete e Dheiziane.

Foto: A gestora administrativa do Cejusc à frente e os estagiários de Direito (Leonardo, Julia, Ana, Gabriel e Maísa), juntamente com as estagiárias de pós graduação Fabiane e Elisa e as assessoras de juiz Eliete e Dheiziane.



Glaucia: "Atendemos vítimas (adolescentes e adultos) de todo e qualquer tipo de crime. Nos casos de violência doméstica, além dos atendimentos individuais, disponibilizamos um grupo aberto para as mulheres que desejarem participar. O objetivo do grupo é fortalecer as participantes e construir redes de apoio para o enfrentamento das situações de violência. Entendemos que a violência é uma crise inesperada na vida, pois ninguém planeja ser vítima de um crime, nunca estamos preparados para quando isso acontece, é diferente de quando planejamos conquistar coisas ou alcançar sonhos. Dessa forma, a exposição à violência é capaz de desorganizar a vida das vítimas em muitas áreas e o objetivo do atendimento psicológico, além de proporcionar tratamento ao TEPT, é auxiliar na reorganização da “bagunça” que a violência trouxe para a vida da pessoa. Além do atendimento psicológico, vítimas desejam obter informações sobre o processo criminal, sobre a condenação do ofensor, ter informações que lhe permitam se sentir segura. Por isso, além do atendimento psicológico, o projeto contempla um suporte jurídico, que presta informações processuais às vítimas, e que explica, em termos simples, o que está acontecendo no processo. E, se são observadas outras demandas trazidas pela violência, também realizamos encaminhamentos para outros equipamentos públicos, a fim de sanar as demandas apresentadas e que extrapolam a capacidade do judiciário em atender.


Além do “Eu com verso”, o CEJUSC tem vários outros projetos, que são destinados à responsabilização (o que é diferente de punir) de ofensores, autores de violência doméstica e familiar contra a mulher, e autores de crimes comuns. Também há projetos destinados à responsabilização e reflexão de adolescentes autores de ato infracional e aqueles que estão em cumprimento de medida protetiva, por meio da filosofia. O CEJUSC também presta suporte e realiza formações de facilitadores em justiça restaurativa e mediadores, realiza atendimentos às pessoas em situação de conflito e que buscam uma solução pacífica e dialógica para a questão."


Saiba mais sobre os projetos desenvolvidos pelo Cejusc-PG no final dessa página



3- Como é o trabalho realizado com ofensores de violência?

Glaucia: "Aos ofensores de violência disponibilizamos grupos reflexivos e dialógicos com o objetivo de promover responsabilização. Entendemos que a responsabilização é diferente de punição. A punição é estéril e não ensina novos comportamentos. A responsabilização, por sua vez, permite a compreensão sobre as consequências do ato que se praticou e enseja a sua reparação a quem sofreu os danos. Para isso, utilizamos das contribuições das metodologias dialógicas da justiça restaurativa (tal como o círculo de construção de paz), as tertúlias pedagógicas de Paulo Freire e a maiêutica socrática (o “parir ideias”). São todos recursos que auxiliam no diálogo com os ofensores, a fim de que possam compreender as consequências do que fizeram."



4- A partir de sua experiência, qual a relação da terapia de exposição narrativa NET com a justiça restaurativa?


Glaucia: "A justiça restaurativa prevê o encontro entre vítima, ofensor e comunidade com o objetivo de promover reparação à vítima e responsabilização para o ofensor. Quando começamos a trabalhar com justiça restaurativa, em 2014, passamos a enxergar uma figura muito importante para o sistema de justiça e que historicamente foi negligenciada e esquecida, que é a vítima. Antes de conhecer a justiça restaurativa, minhas pesquisas e intervenções sempre estiveram direcionadas para os ofensores, pois a vítima não era algo sobre o qual eu pensava ou encontrava referências para estudar. Foi a partir da justiça restaurativa que passamos a enxergar a existência da vítima e todas as suas necessidades que são direcionadas para o sistema de justiça. Após conhecer a NET/FORNET e entender mais sobre o TEPT, passamos a pensar em uma contribuição entre estas duas intervenções enquanto complementares (NET/FORNET e justiça restaurativa), tanto para vítimas quanto para ofensores. Hoje acreditamos que a disponibilização da NET e da FORNET para quem foi vítima e para quem perpetrou violência pode ser uma etapa anterior ao encontro da justiça restaurativa. Enquanto no atendimento da NET/FORNET cuidamos da saúde mental dos envolvidos, com o foco sobre os sintomas de TEPT e agressividade apetitiva, na justiça restaurativa proporcionamos o acesso a informações que são importantes para ambos, vítimas e ofensores. Vítimas possuem muitos questionamentos sobre o ocorrido e preencher estas lacunas pode ser importante para conseguir seguir em frente. A participação em justiça restaurativa contribui para que as vítimas obtenham informações importantes sobre o crime ocorrido, seu planejamento e as intenções do ofensor, bem como promova um processo de humanização deste. Por outro lado, os ofensores podem, a partir do encontro restaurativo, compreender melhor as consequências que seu ato teve para a vida de outras pessoas. Dessa forma, acreditamos que estas duas intervenções são complementares."



5- Como a terapia de exposição narrativa NET foi integrada com o trabalho do CEJUSC? O que vocês observam no seu trabalho?


Glaucia: "Desde a formação que fizemos com a Dra. Fernanda Serpeloni e com a Dra. Anke Koebach, em agosto de 2021, passamos a disponibilizar a intervenção da NET para as vítimas de crimes atendidas pelo CEJUSC. A paciente descrita no artigo publicado foi nossa primeira paciente, atendida imediatamente após o término do curso e com o suporte e supervisão da Fernanda e da terapeuta Bianca, que em muito auxiliou no meu aprendizado. Desde 2019, o CEJUSC passou a desenvolver um projeto chamado “Eu com verso”, que disponibiliza atendimento psicológico a pessoas que foram vítimas de crimes, considerando que esta é, com frequência, uma demanda desassistida pelas políticas públicas e uma responsabilidade do sistema de justiça. Inclusive foi em 2019 que conhecemos a NET, por meio de uma psicóloga social que foi intercambista no CEJUSC durante três meses. Entretanto, naquela época não havíamos encontrado nada no Brasil que pudesse nos auxiliar com a aplicação desta terapia. Porém, dois anos depois, no começo de 2021, soubemos por uma notícia publicada no site da FIOCRUZ que a Dra. Fernanda Serpeloni estava trabalhando na tradução do manual da NET e que em breve ele seria publicado. Desde então temos construído uma estreita parceria para a difusão da NET em nosso trabalho, no âmbito do sistema de justiça e da política de assistência social, e também na realização da pesquisa sobre a intervenção da FORNET e da NETfatos junto à população privada de liberdade de uma penitenciária local. A NET permitiu que pudéssemos prestar um atendimento melhor e mais atento às demandas das vítimas de crimes, em um tempo menor, e com resultados mais satisfatórios."



6- Glaucia, você realizou uma estadia na Universidade de Konstanz, Alemanha. Qual foi o trabalho desenvolvido? Além disso, também esteve com a Dra. Elisabeth Kaiser, uma das fundadoras da NET e colaboradora nos projetos em Ponta Grossa e no Rio de Janeiro. Como foi essa experiência?


Glaucia: "Estive na Universidade de Konstanz durante 4 semanas. Anteriormente as pesquisadoras da Universidade de Konstanz (Anke Koebach, Liliana Filipa Abreu) e também da Fiocruz (Fernanda Serpeloni e Annelise de Moura) estiveram em Ponta Grossa-PR para realizar um projeto em conjunto com o CEJUSC e o Departamento de Polícia Penal tendo como objetivo identificar a prevalência de TEPT e agressividade apetitiva em adultos condenados à pena privativa de liberdade. Durante a minha estadia na Universidade de Konstanz eu realizei parte da análise qualitativa, organizando em categorias as informações obtidas e redigindo um artigo sobre isso. Em Konstanz fui recebida e muito bem acolhida pela brilhante pesquisadora Liliana, que me auxiliou em todo o processo de análise."



Foto: Da direita para a esquerda - Dra. Elisabeth Kaiser (Instituto Internacional da NET), Dra. Glaucia Orth e Dra. Liliana Abreu (Universidade de Konstanz) em reunião na Universidade de Konstanz, Alemanha.


"No penúltimo dia na Universidade, apresentei nossa análise para o grupo de pesquisa da Professora Dra. Anke Hoefler, momento em que conheci a Dra. Elisabeth Kaiser. Por meio da Dra. Anke Koebach, fizemos contato com a Elisabeth e a convidamos para nossa apresentação e também para um café. A Dra. Elisabeth foi extremamente atenciosa comigo e com Liliana. Ela assistiu nossa apresentação e colaborou muito, compartilhando sua rica experiência e ajudando a responder as perguntas feitas pelo grupo de pesquisa. Após o término do encontro com o grupo de pesquisa, fomos tomar um café na cafeteria da Universidade. Eu lembro que não havia cadeiras disponíveis, então ficamos em pé mesmo e tomamos o café ao redor de uma mesa. Com muita gentileza e simplicidade, a Dra. Elisabeth contou a mim e à Liliana como tudo começou, como a NET foi desenvolvida, reunindo as experiências e conhecimentos de três importantes pesquisadores: Dr. Thomas Elbert; Dr. Frank Neuner; e Dra. Maggie Schauer (que é irmã de Elisabeth). Ela compartilhou também suas experiências em treinamentos sobre NET e a importância de que os terapeutas, mesmo experientes, realizem os treinamentos novamente, para que possam se atualizar das contribuições da ciência no tratamento do trauma. Sobre a nossa pesquisa, Elisabeth fez contribuições muito importantes, próprias de quem tem uma vasta experiência clínica e científica no tratamento do TEPT."


 

Laryssa Angelica Copack Muniz. Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Graduação em Direito pela Universidade Estadual de Ponta Grossa. Atualmente é Juíza de Direito da 1a Vara Criminal da Coarca de Ponta Grossa - Paraná. Juíza coordenadora do CEJUSC - Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania de Ponta Grossa. Membro da Comissão Estadual de Justiça Restaurativa do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, professora formadora da Escola Nacional de Formação de Magistrados (ENFAM) , na cadeira de Justiça Restaurativa. Instrutora e facilitadora de Círculos de Paz pela AJURIS.



Glaucia Mayara Niedermeyer Orth, Prefeitura Municipal de Ponta Grossa

Glaucia Mayara Niedermeyer Orth, Prefeitura Municipal de Ponta Grossa. Psicóloga pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (2011), mestre (2013) e doutora (2019) em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa, na linha de "Estado, direitos e políticas públicas". Atualmente é Psicóloga da Fundação Municipal de Assistência Social da Prefeitura de Ponta Grossa cedida ao CEJUSC (Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania). Facilitadora e Instrutora em cursos de justiça restaurativa e terapeuta NET".



O CEJUSC é uma unidade do poder judiciário instituída pela Resolução 125/2010 do Conselho Nacional de Justiça. Em Ponta Grossa, o CEJUSC foi instalado em 2014 e desde então disponibiliza aos jurisdicionados ferramentas modernas e eficazes para a resolução e transformação positiva de conflitos, por meio da conciliação, da mediação e da justiça restaurativa. Além disso, o CEJUSC desenvolve vários projetos na área de Cidadania que são destinados ao atendimento de vítimas, à responsabilização dos ofensores e ao fomento de práticas de justiça restaurativa na comunidade.






Saiba mais sobre os projetos desenvolvidos pelo CEJUSC_PG:










Referências:


ORTH, Glaucia Mayara Niedermeyer; MUNIZ, Laryssa Angelica Copack. VIOLÊNCIA SEXUAL INTRAFAMILIAR, TRAUMA E TERAPIA DE EXPOSIÇÃO NARRATIVA: RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA BRASILEIRA. Humanidades & Inovação, v. 9, n. 20, p. 108-117, 2022.











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